Breve memória de um desejo de suicídio


O apartamento num terceiro andar, a sala acolhedora nada me dizia... lá fora a chuva caía, da conversa já pouco escutava… então tracei o meu caminho até á janela, abria e fui invadida pelo vento frio da rua… já em cima da janela ouvia as batidas certeiras da música, a voz quente do homem que cantava mais uma vez naquela sala, desta vez sem dança… apenas a voz… sentia a chuva bater-me na cara e no corpo mas já pouco importava, nos lábios o sal das lágrimas que desciam pelo meu rosto e um vazio tão grande na minha vida, tão grande dentro de mim… olhei pra baixo e via as pessoas a passar abrigadas nos seus guarda-chuvas, nenhuma delas se preocupou em olhar pra cima nenhuma delas se preocupou em olhar-me… e então senti um abraço, um corpo quente, um aconchego, tão reconfortante... sentia as mãos dela a tremer e quando reparei também ela tinha subido à janela e ambas nos aventuramos num vazio perfeito… pela primeira vez falei, algo confuso por entre choro, a vontade de voar de esquecer..

Senti as mãos a apertarem-me mais, e sabia que qual fosse a decisão ela estaria comigo… assim dizia a música... na cabeça existia outra voz que ninguém poderia apagar, outro sorriso que mesmo de olhos fechados eu via… talvez fosse este um momento perfeito, talvez fosse este um parar no tempo, quando tudo em mim se movia em várias direcções… sentia a roupa colar-se ao corpo, sentia o corpo ficar frio, uma espécie de morte que não o era, o corpo atrás de mim era a única coisa que ainda me trazia algum conforto, talvez fosse a única coisa que não me deixou dar o passo em frente, o passo para o caminho da libertação...

A sua voz assustou-me quando veio tão decidida e forte no meu ouvido, pensei que ia cair e pela primeira vez senti medo, um medo cortante… guardo na memória o som daquela voz trémula e grave.

Senti uma vontade forte de abraçar aquela mulher atrás de mim, senti saudade de todas as pessoas que perdi ao longo da vida, senti necessidade de perceber o porquê de tantas coisas, de ver o sol nascer uma vez mais, de ver a mulher que tinha na cabeça nem que fosse uma última vez, de ouvir a música que entretanto se tinha calado, senti saudade de um beijo sincero, talvez por isso tudo deixei que ela me abraçasse e me trouxesse de volta ao firme chão da sua sala, deixei que ela fosse o anjo que me guiava, deixei que cuidasse de mim… sentia o corpo gelado, o cabelo ensopado em água, e as mãos que me despiam e me aqueciam… senti-a sentar-se atrás de mim e abraçar-me… e pela primeira vez em muito tempo senti alguém importar-se… senti as lágrimas dela caírem no meu ombro... e no meu íntimo senti-me culpada por a fazer chorar...

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Obrigada pelo teu interesse no Livro Negro.
Patrícia Barbosa - Polvoz

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