Memórias de Limbo
Aqui fica o meu primeiro texto e respectiva imagem escolhida pelo Nuno, bem como o seu blogue para que sigam o seu desafio e os textos fantásticos a que dá forma.
http://nihilsecretorum.blogspot.com/?m=1
#desafioliterario1
22:22
A cafeteira desligasse automaticamente, não sem antes me brindar com o seu assobio característico e irritante . Procedo á mistura do café, calmamente, enquanto o seu cheiro forte invade a casa e se mistura com os cheiros das flores e da madeira. Dois biscoitos de manteiga, hum.. Se o médico me visse agora.. Sorrio ao sentar-me com alguma dificuldade na velha cadeira junto da janela.. A madeira solta o seu queixume, eu o meu ataque de tosse característico da idade. A pequena caixa em cima da mesa junto ao copo com água recorda-me a hora da medicação, no seu interior, comprimidos de todos os tamanhos e cores. Podia pintar a porra de um arco íris no céu, penso para comigo. A imagem invade os meus pensamentos e apaga o esboço de arco íris dos meus olhos, foco melhor os binóculos e lá está ele.. Sempre á mesma hora.. Primeiro as pontas dos dedos despontam no canto da lente.. A arrastar-se como um bicho sob a poeira do chão. O braços esticados dobram a parede fria de pedra, por fim a cabeça e o corpo nu..
Não sei nada deste rapaz, acompanha-me a solidão com a tenacidade juvenil que lhe sinto através das paredes.
Vou chamar-lhe “Limbo”, era o nome carinhoso que a minha primeira namorada, oficial diga-se, me deu. Se sou eu a parir este rapaz de que nada sei, tenho o prazer de lhe poder escolher o nome. Sim, será “Limbo “. O rapaz que pari deste lado da janela sentado na minha velha cadeira de madeira contra toda a história da humanidade.
Ele olha-se ao espelho do outro lado, deitado no chão de corpo nu.. Que diabo faz este rapaz?
Senta-se de frente para o espelho.. E começa a falar, não consigo ouvir o que ele diz… mas as suas expressões variam a um ritmo alucinado. Levantasse e começa a dançar.
Procuro na mesinha o meu velho rádio a pilhas, quero fazer parte daquilo, daquele florescer de vida que acontece á minha frente, daquele acto de pura liberdade . Procuro uma música que vá de encontro ao seu ritmo e aí está, parece uma valsa, cabe na cena que se avizinha à minha frente.
Solto uma bela gargalhada! Que raio fazes tu rapaz a dançar sozinho e nu na penumbra?
Nada me adianta berrar, sons que nos chegam da rua misturam se em força com as minhas palavras e a sua mensagem nunca será entregue.
Um gole de café forte e pra meu espanto “Limbo” pára abruptamente. Começa a chorar e cai de joelhos no chão, contorce o corpo como um animal, agarra-se á poeira do chão com força como se quisesse entrar chão a dentro.
Pára com isso! Grito-lhe, o grito desesperado de um pai que não tem braços para o abraçar.
Vai aproveitar a vida rapaz, abraça os que te movem, vai sorrir às pessoas na rua, sai daí!!
Juventude perdida esta, quantos mais estão enfiados num sótão nesta cidade?
A minha cabeça transborda questões e “Limbo” lá no seu sótão começa a vestir-se, um fato azul empoeirado como o ambiente que o envolve, aproxima-se do espelho, só agora percebo que tem uma cicatriz no pescoço, marcas da vida, dessa vida que não conheço.
Sou despertado pelo relógio atrás de mim, maldita máquina que me quebra os sonhos. Mais uma dose de comprimidos e é hora de dormir. Arrasto-me para a cama para um breve descanso. Cabeça na almofada, o corpo a estalar da inactividade de tantas horas. As minhas mãos tocam num pedaço de papel.
Que raio faz uma fotografia debaixo da minha almofada?
O papel é já antigo, enrolado nos cantos a preto e branco. Na imagem um rapaz nu deitado no chão de bruços, frente a um espelho numa parede de pedra.. Intrigado viro a fotografia e leio:
“Memórias de Limbo”
22:22 - 1963
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Obrigada pelo teu interesse no Livro Negro.
Patrícia Barbosa - Polvoz